Má hora

Quero essa vida de dentro pra fora
fosse ou não fosse chegada a hora
quero que seja pra sempre agora
ainda que embora não saiba dizer
Disse o que pude dada a demora
de tudo o que passa e do por fazer
Queria que toda alegria do mundo
trouxesse pra junto fosse onde
fosse pra acontecer
Que seja dito o que não pude dizer
Que seja feito o que não pude fazer
porque no momento errado aflora
o que certamente era pra ser
Desisto por hora o que outrora
ninguém e nem nada há de deter

AB

kardia

καρδιά μου, a portrait of a heart with a seccionated left lung

Detento

Voltar atrás
fazer voltar o tempo
tento e detento
sinto o peito
bate lento
estreito
volta tempo
traz o peito
volta ao leito
ao relento
volta atrás
traz de volta
para tudo
nessa volta
bate lento
estreito
e para!
não me deixe ir embora…

AB

[To go back
to turn back time
I try and as a prisoner
is my heart
beating slow
narrow
go back time!
bring the chest
back to bed
the dew
please go back!
bring it again
freezing all there
beating slow
narrow
and stop!
do not let me go…

Renovação

Vida segue sua lida
bom que vá desmedida
o partido em ferida
recupera em nova vinda
quem haveria de saber
o sabor da tortura finda
presença que revigora
fundo dentro e tudo fora
quem haveria de saber, querido
aventura que explora
fundo dentro e tudo fora
que o peito aguente hora a hora
já que cresce como flora
coração que expande em mola
retorne jamais de agora
ao tamanho necrosado pela
dor que encolhe tudo embora

AB

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recovery 2, oil on canvas. 2016

 

Autoengano

Caro espectador
dos lamentos inflamados
infortúnios embalados
pelos tormentos dessa dor
te acomodas aí sentado
náufrago em tristezas
lendo vísceras vertidas
de um coração sofredor
me espanta a indiferença
estampada em tua presença
algumas vezes acometida
nessa mente sem clemência
quanto tempo será preciso
para ver-te em teu juízo
de igual pobre desertor
de teus dias de alegria
junto a mim em harmonia
sob bençãos de amor

AB

Névoa

Péssimo pensar onde errei
olho pra trás névoa que ofusca
impede a visão que te busca
a razão leva e traz como lei
sensação tão sem conforto
do caos total tudo torto
vejo partes do já ido
escolhidas pela porção
mais inconsciente da minha
própria percepção que te busca
trás névoa que ofusca
caminhos de vida em linha
reta torta sempre brusca
encontram nunca a solução
pra entender onde do erro
vasculho toda a mente
esperança sempre presente
de encontrar semente choca
de tua planta seca e ausente
o vácuo do pensamento segue
vento em busca do elemento
em meio a tanto resíduo
tóxico de tanto sentimento
cada fluxo de ideia não se
perfaz não há linha reta
torta sempre se termina
incapaz impossível encontrar
um motivo consistente que
se renda culpado pelo rumo
dessa vida.

  AB

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andromache. digital over oil on canvas. 2016

A Ausência e a Dúvida – um conto sobre o amor que nunca foi e seus frutos (uma análise da auto obsessão e do monoideísmo)

(English)

E naquele momento ela ficou paralisada. Algo lhe percorrera o corpo, fosse veneno ou alguma toxina que lhe era própria, verdade é que a deixou num estado tal que suas faculdades já não mais funcionavam. A sombra da então gigante Dúvida era incontestavelmente o que a obsidiava, no entanto, Ausência aproveitava-se de seu estado debilitado para desferir-lhe o golpe fatal. Não vê-lo novamente estava muito além do remanescente de suas forças já débeis.

Elas, a Dúvida e a Ausência, há muito haviam crescido e de amigas-irmãs se revelaram cruéis madrastas. De início, na medida do impossível, aprendera a conviver com elas. Logo que nasceram, colocou-as na edícula de sua alma, alimentando-as a cada dia. Acreditava que depois de ter permitido que elas nascessem, deveria deixá-las viver, coexistindo e cocriando no mesmo tempo-espaço de seu eu. Imprudência pura. Não atentara para o fato de que ambas foram geradas a partir de pedacinhos cissíparos de suas próprias entranhas, assim, o dia chegaria em que não mais se contentariam com tal subjugo.

Pedacinhos cissíparos… Sim, também nós nos reproduzimos de maneira assexuada. Tal cissiparidade, invisível, ocorre da seguinte maneira: começa no âmago onde a força vital impulsionada por sensações e pensamentos adversos se rompe, e aquilo que alguns gostam de chamar de alma, dilacerada, divide-se em idênticos pedacinhos de si. Daí, tal como funcionários públicos dum governo inadimplente, o coração consente e o cérebro reitera. Atente-se, pois, que o comum nesse caso é que o indivíduo original, a alma, talvez não volte a se regenerar por completo, como na maioria das espécies de platelmintos, cnidários, etc. O que se segue é a gestação intracerebral: a partir do pedacinho mais resistente, um pequeno balão-ovo vai se formando para que, uma vez quebrada a casca, o filhote-aflição seja liberado, verticalmente. Rumo aos céus deve seguir. Muitas vezes, no entanto, o pior acontece. Um mórbido orgulho parental ou até um equivocado senso de responsabilidade não permite que se vá. Logo, a edícula e a manutenção do rebento. Adverte-se também que tal cria dificilmente pode ser vista pelos olhos que a terra há de comer ou o fogo consumir. Entretanto, alguns sinais latentes podem ser observados, ainda que com dificuldade até mesmo para o próprio genitor.

E elas cresciam, a Dúvida e a Ausência. Matá-las seria abrir mão do que já não tinha. Deixá-las ir, simplesmente impossível, principalmente agora que crescidas estavam maiores que a alma mãe. Sempre pensava duas vezes e desistia. Mas ali, bem ali, elas se mostraram soberanas. Venceram-na. Deixaram somente o que dela era o mais denso. Oco. Verdade seja dita, ela já havia podido sentir que esse momento chegaria e já havia, em êxtase e à distância, quase tateado com as mãos firmes de seus pensamentos torpes a sensação que agora a impossibilitava até de respirar.

Na ocasião do vislumbre agarrara-se à sua dileta, também cria d’alma, Esperança. Acreditava que num momento como esse, tal ninfa piedosa, atiraria em seu oceano lamacento algum tipo de bote salva-almas: enganou-se. Via-se só. Provava agora a verdade do dito popular. Sim, a Esperança seria a última a morrer. Não sabia por quanto tempo poderia aguentar a substância letal que lhe percorria as veias. Substância que ela mesma havia produzido e liberado por imprudência. Talvez.

Substância. Impossível deixar de examinar qual seria seu nome. Haveria de ser algo concreto o que agora transitava livremente por suas veias e adentrava seu sistema nervoso. E ela em sua inconsciência consentira que a dominasse por completo. Uma bile ou algo parecido. Quanto à inconsciência é impossível afirmar. Afinal, em estado germinal, não é incomum haver na alma fissípara somente uma impossibilidade frágil e frívola.

A verdade é que ele surgira à desavisada de maneira inadvertida e nada nunca pareceu tão certo. Assim como surgira, agora a deixava com algumas Pistas torturantes do sim e com sua Ausência e a Realidade infalível do não. Foi o suficiente para que elas, suas reais inimigas, a finalizassem. Se o fizeram sozinhas, não se sabe. Fora Esperança e seu irremissível descaso, talvez tenham contado com a ajuda da Realidade e das gêmeas Pistas, também suas crias mantidas em algum porão nos recônditos de seu ser pouco desbravado.

Alessandra Barbierato

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suspension: walking the tightrope suspended by thoughts. acrylic on cardboard. 2015

Uno

Te caço em todo canto
te caço sob pranto
debaixo de tanto manto
mas pra ser sincera
mesmo com tanta espera
a imagem da tua luz
mesmo sob esse capuz
vai além de toda cruz
nem carece tanta prece
ou faz falta muita história
pra falar dessa tua glória
todo tempo na memória
aquecendo minha vida
o tempo todo vida afora

AB

Prece

Sinto o caco no peito
o coração estilhaçado e desfeito
revela o dano perfeito
espinhos cravados no órgão eleito
que passem as horas e os dias
e o tempo refaça a alegria
que move e semeia o ser
no lugar dessa funda agonia
que a vida possa seguir
e que traga de volta quem há
de ficar e leve consigo quem há
de partir e que a mente demente
deixe o valente coração no lugar
pulsando pela vida e o sangue
ao invés de tentar fazê-lo ruir

AB

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Succumbence

The cool pale complexion can no longer bear
these flying hours that find no way through despair
for the being that at it’s most chaste limit
feels the mind oozing from seed to budding plant
through her infertile womb of love deprived sand
like persistent seedling grows in these mud
soaked in tenderness and omnipresent love
and the permanent cry streams in a flow
the more you reveal yourself the higher I go
the wanting grows and from seedling savage beast
condemned to run till rupestrian exasperation
aloof and indomitable snatching the vastness of this
succumbed to the heart poor mind in devastation

AB

sucumbencia

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sucumbência, acrylic and ink on paper over wood. 2014

Original em Português:

https://alessandrabarbierato.wordpress.com/2014/12/22/sucumbencia-acrylic-and-ink-on-paper-2014/

Wholeness

I miss you everyday and hour
through the path I go without
your light or a single flower
although my broken highest desire
there is not a trace of sadness
for I know you’re there somewhere
with your smile and tenderness
and there is a spot where my soul
can reach yours in your wholeness

AB

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wholeness, acrylic on paper. 22.11.2015

Trincheiras

Mover-se ao vento e como
maior arma o pensamento
do estreito do ser que
refugia fundo no alento
espremido nas trincheiras
do próprio tormento
há de mover-se ao vento
dessa vida que acontece
no concreto do por dentro
onde o castelo que constrói
não é de areia é de cimento

AB

Cimo3_small

cimo 3, oil on canvas

Orvalho

Houve um tempo havia o orvalho
e ele se fazia sentir por inteiro
mas a vida acontece e seu enredo
alastrado feito raiz de carvalho
desdobra o sentido sentido primeiro
e com o tempo o orvalho passageiro
já não se faz sentir tão certeiro
sobra apenas sombra em nevoeiro
atolada em tormenta de engano ledo
torta se torna foco a arquitetura
deslumbrante de mente em tortura
que tudo o que vê não sente pura e
simplesmente mas passa por neblina
escura e dura de coração com atadura
que já não se apercebe logo à frente
nem um palmo sequer sem que a mente
regente viciada em criação demente
divague em verdade oca de amargura

AB

Labaredas

Seremos punidos um dia
por toda essa vida perdida
seremos queimados um dia
por toda essa letargia
de quem se crê no carrinho
de quem encontrou o caminho
de quem nega o presente
queimando no fruto a semente
daquilo mais puro que sente
Não há de ser o inimigo
a queimar-nos fundo no ouvido
labaredas no labirinto
mas a bile do próprio fígado
amargo por gritos e aflito
da inconsciência com o dia já ido
de amor em branco
de coração partido
Já somos punidos agora
por deixar a vida ir embora
presos por algum alheio conceito
deixamos do amor passar o perfeito
que nos nasce aflora direto
do peito e não da ideia qualquer
de um qualquer outro sujeito
Que a vida se faça no instante
do nosso coração pulsante
antes que não haja mais a luz
que conduz com seu lume berrante
a alma que se insiste e demora errante

AB

Ferrugem

À flor da pele transborda
exalo-o agora e toda hora
pelos nervos meus aflora

muitas coisas se passaram
outras tantas se demoram
algo é certo nesta história
se emaranha na memória
que me corre veia afora

não esqueço um só instante
não demore com o restante
pois sequelas já me surgem
como ao ferro a ferrugem
que se forma ao relento
do meu ser em desalento

AB

Âmbar

Queria ver-te agora dormindo o sono
dos justos que te cabe e assegurar-me se
sonhas comigo como contigo passo
a noite varada virada em abrigo seguro
mundo encantado onde existo a embalar-te
os passos pesados das horas vividas
dos olhos cansados da vida tolhida
cianos do norte gelado e longínquo
ainda assim o calor lhes escapa impulsivo
desejo inflamado do azul ao carmim
aturde e transborda seu âmbar em mim
ver-te em sonho ilumina toda uma vida
com o sol boreal de tua aurora aquecida
reluzindo sobre a alma em sombra jazida

AB

Alvorada

O dia surpreende ao nascer diferente
e o que ontem parecia imprescindível
a alvorada mostra distante o suficiente
ressurge aí estrela de brilho infalível
iluminando o escuro do indiferente
desmanchando sofrimento insuportável
transformando dor em amor afluente
não venha agora se impor novamente
algemando-me a mente em ti desvalida
deixe-me assim por minha conta enfim
abra mão do jogo e da força medida
siga teu rumo sem prumo até o fim
e na vida encontre o caminho sem mim

AB

Sorriso

O coração parece parar ao menor
pulso insano insensato que teu nome faz
calar no silêncio do pensamento que
te trás como avalanche que me inunda
feito fluxo por tal impulso desmedido
da lembrança do mais belo sol sorriso
imagino a vida em torpor de paraíso

onde o astro-rei se levanta enciumado
fumegando em labaredas sem juízo
para ver de onde vem tal alma reluzente
que inebria e se faz presente pelo brilho
desse riso entorpecente capaz de ofuscar
sem pudor a mais intensa chama de calor

AB

Angel

Sweet angel of peace
from far away you are
and far away you’ve been
the space doesn’t seem
to change a thing it only
makes the truth increase
the time doesn’t seem
to bother either since
I know the more it goes
stronger grows the seed
that floods our hearts
within from the very deep
Sweet angel of light
far but always by my side
everywhere I go I just
strongly feel you deep inside
no matter how I try
to talk you out of my mind
for ages I’ve tried to hide
this finest shade of light
that just despite overflows
so bright to the outside

AB

Escuro

sentei, e o escuro me rodeou. aos pouco foi tomando meus pés, subindo pelas minhas pernas. o breu era tanto que se alastrava em ausência. logo já não havia pé, e pela perna vinha destituindo-a da vida. duas eram e por duas vezes o breu correu. as mãos tão frágeis nem suscitaram relutar: deixaram-no passar. pelos braços subia sem parar. e não havia mais membros. pelos olhos veio então, destituindo-os da visão. congelava o cérebro já quase sem noção. mas o que fazer sem o pensamento? Já sei: me restará o coração. foi então que entendi porque o escuro me achara ali, não sem razão: ele sabia que era presa fácil pois me deixaste o peito oco e sem ação. IMG_20150606_020823

autorretrato no escuro sobre história, fotografia sobre grafite sobre papel, 2015

Fantasia

tentei despistar, tentei desfazer
tentei encontrar outra história
e viver
mas a vida tropeça na mente
que se arrasta de costas pra frente
sem poder perceber o abismo
que se abre por dentro da gente
e a ilusão que se forma dia-a-dia
agarramos com grande alegria
sem prever a fumaça que esfria
entre os dedos vazios de agonia

AB

IMG_20150602_021042

Oco

Amigo que foi incansável
tateava a dor no fundo sentido
expõe a razão de tanto zunido
sempre presente ao menos no ido
nesse peito de vida aparente
que pulsa entre altos e baixo
seco por dentro por vezes partido

AB

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esfera e flor, oil on canvas. 2006

Alcateia

Pois não vejo justiça na teia
que se arma inteiriça e ateia
presa que imóvel torna-se ceia
mas vale saltar-lhe na veia
ser de vida quebrada já meia
de quem a paz atormenta a alheia
liberta-se da mente cadeia
agitada que a todos odeia
e mesmo débil de dor anseia
calar aquele que a luz permeia

AB

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“figura”, oil on canvas. 2005

Ontem

Que ontem fosse pra sempre
mal não faria afinal a ausência
incerta que sobra grita aflita
seu nome que ecoa na fonte
da alma pulsante que ele agita
que incerta vagueia sem meta
aturdida mirando ao longe
figura cada vez mais querida

tateia vendada o caminho com
olhos voltados pra dentro do
peito lotado vertendo carinho
querendo que ontem não fosse
só dia virasse um longo passeio

AB

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detalhe de “jardim das alegrias”, acrylic on canvas. 2014

Dimensão

Nunca nada foi tão sublime
os olhos da carne distante
voltados ao cerne no instante
em que vê sua parte alheia
em outra carne a qual permeia
não há tato troca nem gosto
da carne não há combustão
do prazer da presença nada
quase senão instantes apenas
inflados de vida e o torpor do
amor mais intenso que existe
e a certeza selada por olhos do
toque invisível entre almas
habitantes do escuro da vida
onde de nada se necessita
habitantes de terra sem chão
onde não há moeda de troca
terra firme fecunda longínqua
reino prá lá da outra dimensão

AB

mar

“mar”, acrylic and marble dust on canvas. 2006.

Leste

Quero que o cerco do seu mar
feche sobre mim e esse azul
inunde-me a vida com a sua e
refaça-me em plena alegria
Quero que o cerco do seu ar
feche sobre mim tanto azul
e toque-me a pele da alma
com o frescor que tudo resfria
Quero que o cerco do seu fogo
arda sobre mim com seu azul e
tinja a tinta cinza da vida
de olhos de quem antes não via

AB

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“east road”, acrylic on canvas, 57×45. 2013

Beco

Que o silêncio ensurdeça quem
o coração calou com peso de
sua vida sem norte ao precipício
que a boca se apodreça pela seca
que causou onde a vida se fazia
intensa e por muito pouco rejeitou
que a medida dessa consciência
baste e que siga o beco que pegou.

AB

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 “cimo”, oil on canvas. 2006 Alessandra Barbierato

Espelho

Objeto que assombra e também
atormenta o silêncio da mente
que espera o momento clemente
de fundir se pensando aquém
e assim nesse sono profundo
se mantém sem saber que o assombro
em verdade ele não tem senão
somente reflexo do que além
enxerga no outro o que já tem.

AB

Sinto seus olhos sobre meus passos
pegadas deixo no coração
aos pedaços e tento juntar
partes do meu que há pouco eram cacos
sinto sua vida sobre a minha
estampada em ferida aberta
sem solução remendo nem nó
mas com a certeza de que somos
ungidos num só embora a dor
de tentar desfazer-nos em pó

AB

couple2

Presente

Reconta-se a história
o passado me sopra ao ouvido
e o que um dia foi apenas zunido
começa a ranger insistente
revi-o um dia, revejo na mente
e o ruido aumenta a passos largos
revi novamente, reverei inconsequente
e o que um dia foi apenas zunido
começa a gritar estridente 
passei os dias de trás pra frente
passado por demais inesperado
se torna princípio presente

AB

Consumação

Me livraste do carma da efemeridade
sem meu objeto e o sujeito incompleto
sigo então galgando rumo ao cume da vida
despertando dia-a-dia talvez a maioria
na certeza de luz plena em busca divina
pois desse fogo que ainda queima em meu peito
tiro sustento e sigo momento-a-momento
na ânsia de um dia vê-la chama consumida
por tarefas importantes rumo à subida e
não abafada por vicissitudes da vida

AB

Desvelo

Olhos sem superfície nem reflexão
nus da planície que de tudo te esconde
não vejo teus olhos te olho na fonte
do ser que nos funde e com fogo responde
quando foi te despojaste da membrana
que cobre a alma e outra alma engana
forçando-me ao êxtase do salto profundo
num mundo de chamas de vida fecundo
onde encontro a paz do eterno nirvana

AB

Sentinela

Confesso: somente um há que me
pode ajudar em tamanho impasse
tremendo tormento desastre que
se me apresenta em constante crescente
como um anjo da guarda vivente
não preciso evocar aos invisíveis
somente essa presença vagando
em minha mente já é suficiente
resolvendo questões das mais difíceis
contra tudo me defende e opina
insistente sobre minhas aflições
no silêncio da alma em seus rasgões
abranda a dor com suavidade
e me protege de toda maldade
agradeço-lhe em tom insistente
a existência desse amor em essência
que me obriga a transcender à matéria
me afastando desse mar de demência.

AB

Mantra

Palavras emancipadas ao vento
do tal raciocínio absente dentre
todas somente seu nome aparece
zunindo crescente sem ecoar
ressoando em assonâncias de prece
lapida as águas revoltas do mar
pois em seu vaivém discrepante mais
vem sem parar de impor seu rubor
que se entrega ao tentar se calar.

AB

Sucumbência

A tez pálida e fria já não pode suportar
que as horas voem sem que rumo possa dar
ao ser que em seu limite mais estreme sente
a mente esvaindo-se semente em planta broto
de seu ventre infértil de amor carente
como muda cresce insistente meio ao lodo
encharcado de ternura e amor onipresente
e o choro permanente segue em torrente
quanto mais te mostras mais me embriagas
a falta cresce e de muda animal silvestre
condenado a correr à exasperação rupestre
arisco e indomável arrebatando a vastidão
da mente devastada sucumbida ao coração.

AB

Rios

Gostaria de chorar meu ser em vários rios
esvair-me por diferentes águas correntes
dissipar os ardis dessas dores frequentes

para longe arrastando os tormentos do ser
rios que tão caudalosos pudessem verter
por vários dias a fio sem parar de correr

que um escoasse pra fora os dias sem brio
um outro corresse embora os dias sem luz
e que a mente esvaísse do corpo já frio
do incessante sofrer pela carne e a cruz

Para Leonard,

AB

Vício

A cada dia recomeça a tentativa
de livrar-me desse vício martelo
a estacar-me de maneira aflitiva
encadeando-me a alma elo a elo
pedi ao tempo levasse para longe
a memória que recuso a revirar
mas retorna insistente no horizonte
e não deixa minha alma descansar
a memória movente se aquieta jamais
fecho fundos olhos breu luto pela paz
mas o pensamento já não se perfaz
sem ti que nele te moves e és a luz
como lente frente a tudo te prevejo
recorro ao que tenho e rendo ao ensejo
a memória contato que em tato dissolve
o meio-abraço quase apertado o beijo
suas mãos suave suporte que envolve
por dentro e por fora és tudo que vejo
se dentre o universo pudesse escolher
somente uma dádiva estaria em questão
tornaria concretas memória e imaginação.

AB

Dilema

Deuses e demônios cruzaram-me o horizonte
qual meditativa verdade então instaurada
dali me ficou proferida a função dessa fonte:
passar noite e dia na companhia da realidade
Tarefa mais árdua que essa não há, primeiro
por vezes tentei disfarçando, tais seres driblar
Depois em segredo comigo pensei infalível:
“não vejo, não falo ou escuto: não preciso lidar”
Acreditei ser possível tornar-me invisível
passando impassível por qualquer lugar
Quem me haverá de forçar ao intangível?
Por fim, disfarçado de tigre ardiloso e sagaz
veio a mim já exausto o engano me pondo a par
“Menina, fazer-te de sonsa é apenas fugaz
em solo arenoso quanto mais cresce a planta
mais árdua ainda é a tarefa de não afundar.”

AB

DNA

Alastrado sob a pele como vida
Extirpá-lo tentei, inutilmente:
Raiz não concreta, da mais resistente
Matéria densa se mistura e se estranha
Mas essência ao misturar-se, se emaranha
Se nega ou afirma pouco se dá
Consigo presente sigo igualmente:
Corre-me no sangue alterado e pela veia
Onde me flui a vida e seu DNA passeia.
Sob o céu todos são afeiçoáveis
E num comum movimento inverso
Adentram-nos e se tornam confiáveis
Erigindo castelo de alicerce duvidoso
Onde almas se acorrentam incompatíveis
Ao invés de expandirem-se no venturoso:
Razão real do amor todo-poderoso.
Se nega ou afirma pouco se dá
Consigo corrente na veia igualmente:
Não mais embrionária, vegetativa ou dormente
Trago a alma de vida insuflada ainda que ausente.

AB

Margarida

E Margarida passava, não despercebida, mas frondosa. Um tanto desconjuntada, fazia-se árvore, não flor. Irônico: não foram poucos os que quiseram de Margarida, a flor. Mas ela era árvore, e não a reduziriam assim facilmente. Suas raízes estavam por demais profundas, cravadas em suas certezas, em seus erros e vícios. E quem há de criticá-la?

Num de seus primeiros dias na casa, chegara tarde da noite trazida por uma viatura da polícia. Situação estranha. Apesar das especulações, nada pôde ser afirmado sobre o motivo. Os policiais que lotavam o veículo, sem exceção, a reverenciavam como se da árvore quisessem colher os frutos. Nunca se soube o que havia ocorrido, a viatura não era local nem os policiais das redondezas.

Nunca fora vista em calças, sempre saias. No inverno vestia grossas meias por baixo. No verão parecia não vestir nada. Pisava firme. Divididas, as pessoas hora acreditavam ser autodefesa, hora acreditariam ser excesso de autoestima. Oscilavam ao sabor dos ânimos. Mas ela só pisava. De qualquer maneira, precisavam fazer dela algum juízo: se algo importante lhe parecia faltar, sem dúvidas, algo desconcertante nela excedia.

Não era dada às conversas corriqueiras, mas também nunca as criticara, ao menos não em público. Tinha pressa. Era um enigma, e enigmas não podiam ser vistos com bons olhos. Boa coisa fosse, seguramente ela haveria dividido com os demais, haveria se aberto a todos, igual a todos, como todos queriam. Tudo sempre às claras, era o que prezavam. Devia ter mostrado maior interesse naquela gente e seus fins, consentido seus meios. Devia ter mostrado maior interesse em seus interesses e reverenciado suas filosofias.

Seus horários não eram nada convencionais, geravam desconfiança e profundo desconforto. Sua cabeça, a mantinha intoleravelmente erguida. Parecia carregar algo a peso de ouro em sua couraça, algo que fazia com que ela não perdesse o rumo ou se desviasse em tolices. Não que houvesse quem as identificasse, mas sua notada dissonância parecia sair-lhe pelas narinas, junto à expiração necessária ao alívio dos pulmões cheios senão de ar, de impurezas. E ela as identificava. Poderia, talvez, ser que carregasse o peso de uma má-fortuna ou simplesmente de convicções pacientemente meditadas. E eles, se não identificavam tolices, tampouco meditações, seguramente identificavam os expurgos que sua insatisfação deixava no ar, sufocantes.

Numa tarde, algumas senhoras encurralando-a contra um muro, tentaram fazer com que se deleitasse com seus causos. Quanto mais Margarida era prensada contra a parede, maior era sua insuportável delicadeza. Sem querer ser rude nem conseguir sorrir, desconversou: já se fazia tarde. Que descaso! Noutra tarde foram os maridos. Entre comentários fortuitos e apreciações sobre o mundo feminino, o qual a ela não importava a mínima, tentavam examinar mais de perto suas formas de fêmea. Fazia-se tarde. Que descaso! Não se sabe ao certo se por conta de seu comportamento, mas a verdade é que causava sensações extremas, tanto nelas, quanto neles. Sua presença parecia pesar toneladas na alma de cada um deles sem que identificassem a razão. Sempre quando ela era o assunto, falava-se aos risos de planos e estratagemas de como se livrarem dela. A fixação em sua figura era tanta que dava a impressão de quererem tragá-la, possuí-la, sorvê-la, assimilando-a o quanto possível, cada um em seu ser.

Aconteceu numa tarde de verão. Ela havia estado na vizinhança por vários meses, quando a funerária veio-lhe à casa buscar um corpo. Ninguém nunca soube quem seria o morto que saía embalado, nem quem havia chamado a funerária. Não perguntaram, nada disseram. Não sabiam quem atendeu a porta. Não sabiam se de males ela padecera, nem quais haviam sido suas razões de viver. Ninguém soube sequer se Margarida morreu ou viveu assassina e foragida. Pensava-se o pior. Evitava-se o assunto.

O mais importante foi que dali a dias os novos moradores chegaram e eles superaram todas as expectativas. Uma jovem família. Um casal de rechonchudos filhos, aparentemente bem educados que de imediato caíram no gosto geral. Esfuziantes, gostavam de sair à caça de pequenos animais com biribas e chumbinhos. Pura travessura infantil, nada que comprovasse terem sido concebidos em meio a um ritmo descompassado. O marido, exímio contador, trabalhava num importante escritório de advocacia, daqueles que mantinham grandes empresas livres das pesadas sanções e punições por conta do mercúrio ou ainda do necessário amianto. A esposa, uma jovem senhora que, não exalando a nada proibido nem próprio, não demonstrava nenhuma incerteza, nada adverso ou duvidoso, muito menos excessivo: mantinha-se dentro dos limites da casca de seu ser. Tinha horários fixos e claros. Fazia parte de alguma organização caridosa pelas vítimas de algo, talvez amianto ou mercúrio. Não que lidasse com os desfortunados tão de perto, mas sim, ajudava-os. Foi o que disseram.

Eram bons. Prezavam o sagrado matrimônio e a estagnação do ser em um porto, quando seguro. Acreditavam em algumas virtudes e provérbios, mas só de ouvir dizer, e os diziam. Tinham bem fundados os inquebrantáveis alicerces da sobrevivência, afinal sobreviviam. Ali não precisariam de muito mais. Frequentavam-lhes as casas e acolhiam suas filosofias. Conversavam sobre as atualidades, assim que interesses os tinham em comum. Sem expurgos. Não se pode esquecer que emprestavam secos, molhados e o que fosse necessário. E a vida seguiu mais leve. E a terra podia voltar a ser plana.