Margarida

E Margarida passava, não despercebida, mas frondosa. Um tanto desconjuntada, fazia-se árvore, não flor. Irônico: não foram poucos os que quiseram de Margarida, a flor. Mas ela era árvore, e não a reduziriam assim facilmente. Suas raízes estavam por demais profundas, cravadas em suas certezas, em seus erros e vícios. E quem há de criticá-la?

Num de seus primeiros dias na casa, chegara tarde da noite trazida por uma viatura da polícia. Situação estranha. Apesar das especulações, nada pôde ser afirmado sobre o motivo. Os policiais que lotavam o veículo, sem exceção, a reverenciavam como se da árvore quisessem colher os frutos. Nunca se soube o que havia ocorrido, a viatura não era local nem os policiais das redondezas.

Nunca fora vista em calças, sempre saias. No inverno vestia grossas meias por baixo. No verão parecia não vestir nada. Pisava firme. Divididas, as pessoas hora acreditavam ser autodefesa, hora acreditariam ser excesso de autoestima. Oscilavam ao sabor dos ânimos. Mas ela só pisava. De qualquer maneira, precisavam fazer dela algum juízo: se algo importante lhe parecia faltar, sem dúvidas, algo desconcertante nela excedia.

Não era dada às conversas corriqueiras, mas também nunca as criticara, ao menos não em público. Tinha pressa. Era um enigma, e enigmas não podiam ser vistos com bons olhos. Boa coisa fosse, seguramente ela haveria dividido com os demais, haveria se aberto a todos, igual a todos, como todos queriam. Tudo sempre às claras, era o que prezavam. Devia ter mostrado maior interesse naquela gente e seus fins, consentido seus meios. Devia ter mostrado maior interesse em seus interesses e reverenciado suas filosofias.

Seus horários não eram nada convencionais, geravam desconfiança e profundo desconforto. Sua cabeça, a mantinha intoleravelmente erguida. Parecia carregar algo a peso de ouro em sua couraça, algo que fazia com que ela não perdesse o rumo ou se desviasse em tolices. Não que houvesse quem as identificasse, mas sua notada dissonância parecia sair-lhe pelas narinas, junto à expiração necessária ao alívio dos pulmões cheios senão de ar, de impurezas. E ela as identificava. Poderia, talvez, ser que carregasse o peso de uma má-fortuna ou simplesmente de convicções pacientemente meditadas. E eles, se não identificavam tolices, tampouco meditações, seguramente identificavam os expurgos que sua insatisfação deixava no ar, sufocantes.

Numa tarde, algumas senhoras encurralando-a contra um muro, tentaram fazer com que se deleitasse com seus causos. Quanto mais Margarida era prensada contra a parede, maior era sua insuportável delicadeza. Sem querer ser rude nem conseguir sorrir, desconversou: já se fazia tarde. Que descaso! Noutra tarde foram os maridos. Entre comentários fortuitos e apreciações sobre o mundo feminino, o qual a ela não importava a mínima, tentavam examinar mais de perto suas formas de fêmea. Fazia-se tarde. Que descaso! Não se sabe ao certo se por conta de seu comportamento, mas a verdade é que causava sensações extremas, tanto nelas, quanto neles. Sua presença parecia pesar toneladas na alma de cada um deles sem que identificassem a razão. Sempre quando ela era o assunto, falava-se aos risos de planos e estratagemas de como se livrarem dela. A fixação em sua figura era tanta que dava a impressão de quererem tragá-la, possuí-la, sorvê-la, assimilando-a o quanto possível, cada um em seu ser.

Aconteceu numa tarde de verão. Ela havia estado na vizinhança por vários meses, quando a funerária veio-lhe à casa buscar um corpo. Ninguém nunca soube quem seria o morto que saía embalado, nem quem havia chamado a funerária. Não perguntaram, nada disseram. Não sabiam quem atendeu a porta. Não sabiam se de males ela padecera, nem quais haviam sido suas razões de viver. Ninguém soube sequer se Margarida morreu ou viveu assassina e foragida. Pensava-se o pior. Evitava-se o assunto.

O mais importante foi que dali a dias os novos moradores chegaram e eles superaram todas as expectativas. Uma jovem família. Um casal de rechonchudos filhos, aparentemente bem educados que de imediato caíram no gosto geral. Esfuziantes, gostavam de sair à caça de pequenos animais com biribas e chumbinhos. Pura travessura infantil, nada que comprovasse terem sido concebidos em meio a um ritmo descompassado. O marido, exímio contador, trabalhava num importante escritório de advocacia, daqueles que mantinham grandes empresas livres das pesadas sanções e punições por conta do mercúrio ou ainda do necessário amianto. A esposa, uma jovem senhora que, não exalando a nada proibido nem próprio, não demonstrava nenhuma incerteza, nada adverso ou duvidoso, muito menos excessivo: mantinha-se dentro dos limites da casca de seu ser. Tinha horários fixos e claros. Fazia parte de alguma organização caridosa pelas vítimas de algo, talvez amianto ou mercúrio. Não que lidasse com os desfortunados tão de perto, mas sim, ajudava-os. Foi o que disseram.

Eram bons. Prezavam o sagrado matrimônio e a estagnação do ser em um porto, quando seguro. Acreditavam em algumas virtudes e provérbios, mas só de ouvir dizer, e os diziam. Tinham bem fundados os inquebrantáveis alicerces da sobrevivência, afinal sobreviviam. Ali não precisariam de muito mais. Frequentavam-lhes as casas e acolhiam suas filosofias. Conversavam sobre as atualidades, assim que interesses os tinham em comum. Sem expurgos. Não se pode esquecer que emprestavam secos, molhados e o que fosse necessário. E a vida seguiu mais leve. E a terra podia voltar a ser plana.