Olhos nos olhos não vejo
sinto é na vista cansada
o gosto de longe do beijo
na alma em parte amarrada
atada pra fora do peito

Olhos nos olhos não vejo
sinto é no peso do dia
o gosto ausente do beijo
na alma em parte já fria
pendida pra fora do peito

AB

[Knot

Eye to eye peep we won’t cast
In my eyestrain I savour
your faraway kiss flavour
in this yet partly fasten soul
hanging outside the breast

Eye to eye peep we won’t cast
In the day burden I savour
your absent kiss flavour
in this yet partly cold soul
pending outside the chest]

Névoa

Péssimo pensar onde errei
olho pra trás névoa que ofusca
impede a visão que te busca
a razão leva e traz como lei
sensação tão sem conforto
do caos total tudo torto
vejo partes do já ido
escolhidas pela porção
mais inconsciente da minha
própria percepção que te busca
trás névoa que ofusca
caminhos de vida em linha
reta torta sempre brusca
encontram nunca a solução
pra entender onde do erro
vasculho toda a mente
esperança sempre presente
de encontrar semente choca
de tua planta seca e ausente
o vácuo do pensamento segue
vento em busca do elemento
em meio a tanto resíduo
tóxico de tanto sentimento
cada fluxo de ideia não se
perfaz não há linha reta
torta sempre se termina
incapaz impossível encontrar
um motivo consistente que
se renda culpado pelo rumo
dessa vida.

  AB

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andromache. digital over oil on canvas. 2016

Prece

Sinto o caco no peito
o coração estilhaçado e desfeito
revela o dano perfeito
espinhos cravados no órgão eleito
que passem as horas e os dias
e o tempo refaça a alegria
que move e semeia o ser
no lugar dessa funda agonia
que a vida possa seguir
e que traga de volta quem há
de ficar e leve consigo quem há
de partir e que a mente demente
deixe o valente coração no lugar
pulsando pela vida e o sangue
ao invés de tentar fazê-lo ruir

AB

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Trincheiras

Mover-se ao vento e como
maior arma o pensamento
do estreito do ser que
refugia fundo no alento
espremido nas trincheiras
do próprio tormento
há de mover-se ao vento
dessa vida que acontece
no concreto do por dentro
onde o castelo que constrói
não é de areia é de cimento

AB

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cimo 3, oil on canvas

Orvalho

Houve um tempo havia o orvalho
e ele se fazia sentir por inteiro
mas a vida acontece e seu enredo
alastrado feito raiz de carvalho
desdobra o sentido sentido primeiro
e com o tempo o orvalho passageiro
já não se faz sentir tão certeiro
sobra apenas sombra em nevoeiro
atolada em tormenta de engano ledo
torta se torna foco a arquitetura
deslumbrante de mente em tortura
que tudo o que vê não sente pura e
simplesmente mas passa por neblina
escura e dura de coração com atadura
que já não se apercebe logo à frente
nem um palmo sequer sem que a mente
regente viciada em criação demente
divague em verdade oca de amargura

AB

Labaredas

Seremos punidos um dia
por toda essa vida perdida
seremos queimados um dia
por toda essa letargia
de quem se crê no carrinho
de quem encontrou o caminho
de quem nega o presente
queimando no fruto a semente
daquilo mais puro que sente
Não há de ser o inimigo
a queimar-nos fundo no ouvido
labaredas no labirinto
mas a bile do próprio fígado
amargo por gritos e aflito
da inconsciência com o dia já ido
de amor em branco
de coração partido
Já somos punidos agora
por deixar a vida ir embora
presos por algum alheio conceito
deixamos do amor passar o perfeito
que nos nasce aflora direto
do peito e não da ideia qualquer
de um qualquer outro sujeito
Que a vida se faça no instante
do nosso coração pulsante
antes que não haja mais a luz
que conduz com seu lume berrante
a alma que se insiste e demora errante

AB

Ferrugem

À flor da pele transborda
exalo-o agora e toda hora
pelos nervos meus aflora

muitas coisas se passaram
outras tantas se demoram
algo é certo nesta história
se emaranha na memória
que me corre veia afora

não esqueço um só instante
não demore com o restante
pois sequelas já me surgem
como ao ferro a ferrugem
que se forma ao relento
do meu ser em desalento

AB

Escuro

sentei, e o escuro me rodeou. aos pouco foi tomando meus pés, subindo pelas minhas pernas. o breu era tanto que se alastrava em ausência. logo já não havia pé, e pela perna vinha destituindo-a da vida. duas eram e por duas vezes o breu correu. as mãos tão frágeis nem suscitaram relutar: deixaram-no passar. pelos braços subia sem parar. e não havia mais membros. pelos olhos veio então, destituindo-os da visão. congelava o cérebro já quase sem noção. mas o que fazer sem o pensamento? Já sei: me restará o coração. foi então que entendi porque o escuro me achara ali, não sem razão: ele sabia que era presa fácil pois me deixaste o peito oco e sem ação. IMG_20150606_020823

autorretrato no escuro sobre história, fotografia sobre grafite sobre papel, 2015

Má hora

Quero essa vida de dentro pra fora
fosse ou não fosse chegada a hora
quero que seja pra sempre agora
ainda que embora não saiba dizer
Disse o que pude dada a demora
de tudo o que passa e do por fazer
Queria que toda alegria do mundo
trouxesse pra junto fosse onde
fosse pra acontecer
Que seja dito o que não pude dizer
Que seja feito o que não pude fazer
porque no momento errado aflora
o que certamente era pra ser
Desisto por hora o que outrora
ninguém e nem nada há de deter

AB

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figura, oil on canvas. 2004

Fantasia

tentei despistar, tentei desfazer
tentei encontrar outra história
e viver
mas a vida tropeça na mente
que se arrasta de costas pra frente
sem poder perceber o abismo
que se abre por dentro da gente
e a ilusão que se forma dia-a-dia
agarramos com grande alegria
sem prever a fumaça que esfria
entre os dedos vazios de agonia

AB

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Desaperto

Quero o fim dessa noite em aberto
que te tira e te leva de perto
quero o fim desse peito encoberto
do abraço o aperto mais certo
Vou voltar para ver se acerto
o predito futuro entreaberto
que boceja já quase desperto

AB

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la Seine, oil on canvas. 2005

Alcateia

Pois não vejo justiça na teia
que se arma inteiriça e ateia
presa que imóvel torna-se ceia
mas vale saltar-lhe na veia
ser de vida quebrada já meia
de quem a paz atormenta a alheia
liberta-se da mente cadeia
agitada que a todos odeia
e mesmo débil de dor anseia
calar aquele que a luz permeia

AB

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“figura”, oil on canvas. 2005

Ontem

Que ontem fosse pra sempre
mal não faria afinal a ausência
incerta que sobra grita aflita
seu nome que ecoa na fonte
da alma pulsante que ele agita
que incerta vagueia sem meta
aturdida mirando ao longe
figura cada vez mais querida

tateia vendada o caminho com
olhos voltados pra dentro do
peito lotado vertendo carinho
querendo que ontem não fosse
só dia virasse um longo passeio

AB

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detalhe de “jardim das alegrias”, acrylic on canvas. 2014

Les Multiples Demeures – small works, “sucumbência”, acrylic & ink on paper. 2014

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“sucumbência”, acrylic & ink on paper over wood. 2014.

A tez pálida e fria já não pode suportar
que as horas voem sem que rumo possa dar
ao ser que em seu limite mais estreme sente
a mente esvaindo-se semente em planta broto
de seu ventre infértil de amor carente
como muda cresce insistente meio ao lodo
encharcado de ternura e amor onipresente
e o choro permanente segue em torrente
quanto mais te mostras mais me embriagas
a falta cresce e de muda animal silvestre
condenado a correr à exasperação rupestre
arisco e indomável arrebatando a vastidão
da mente devastada sucumbida ao coração.

AB

A Ausência e a Dúvida

E naquele momento ela ficou paralisada. Algo lhe percorrera o corpo. Fosse veneno ou alguma toxina que lhe era própria, a verdade é que a deixou num estado tal que suas faculdades já não mais funcionavam. A sombra da então gigante Dúvida era incontestavelmente o que a obsidiava, no entanto, Ausência sorrateira aproveitava-se de seu estado debilitado para lhe desferir o golpe fatal: Não o ver novamente estava muito além do remanescente de suas forças já débeis.

Elas, a Dúvida e a Ausência, há muito haviam crescido e de amigas-irmãs se revelaram cruéis madrastas. De início, na medida do impossível, aprendera a conviver com elas. Logo que nasceram, colocou-as na edícula de sua alma, alimentando-as a cada dia. Acreditava que depois de ter permitido que elas nascessem, deveria deixá-las viver, coexistindo e cocriando no mesmo tempo-espaço de seu eu. Imprudência pura. Não atentara para o fato de que ambas foram geradas a partir de pedacinhos cissíparos de suas próprias entranhas, assim, o dia chegaria em que não mais se contentariam com tal subjugo.

Pedacinhos cissíparos… Sim, também nós nos reproduzimos de maneira assexuada. Tal cissiparidade, invisível, ocorre da seguinte maneira: começa no âmago onde a força vital impulsionada por sensações e pensamentos adversos se rompe, e aquilo que alguns gostam de chamar de alma, dilacerada, divide-se em idênticos pedacinhos de si. Daí, tal como funcionários públicos dum governo inadimplente, o coração consente e o cérebro reitera. Atente-se, pois, que o comum nesse caso é que o indivíduo original, a alma, talvez não volte a se regenerar por completo, como na maioria das espécies de platelmintos, cnidários, etc. O que se segue é a gestação intracerebral: a partir do pedacinho mais resistente, um pequeno balão-ovo vai se formando para que, uma vez quebrada a casca, o filhote-aflição seja liberado, verticalmente. Rumo aos céus deve seguir. Muitas vezes, no entanto, o pior acontece. Um mórbido orgulho parental ou até um equivocado senso de responsabilidade não permite que se vá. Logo, a edícula e a manutenção do rebento. Adverte-se também que tal cria dificilmente pode ser vista pelos olhos que a terra há de comer ou o fogo consumir. Entretanto, alguns sinais latentes podem ser observados, ainda que com dificuldade até mesmo para o próprio genitor.

E elas cresciam, a Dúvida e a Ausência. Matá-las seria abrir mão do que já não tinha. Deixá-las ir, simplesmente impossível, principalmente agora que crescidas estavam maiores que a alma mãe. Sempre pensava duas vezes e desistia. Mas ali, bem ali, elas se mostraram soberanas. Venceram-na. Deixaram somente o que dela era o mais denso. Oco. Verdade seja dita, ela já havia podido sentir que esse momento chegaria e já havia, em êxtase e à distância, quase tateado com as mãos firmes de seus pensamentos torpes a sensação que agora a impossibilitava até de respirar.

Na ocasião do vislumbre agarrara-se à sua dileta, também cria d’alma, Esperança. Acreditava que num momento como esse, tal ninfa piedosa, atiraria em seu oceano lamacento algum tipo de bote salva-almas: enganou-se. Via-se só. Provava agora a verdade do dito popular. Sim, a esperança seria a última a morrer. Não sabia por quanto tempo poderia aguentar a substância letal que lhe percorria as veias. Substância que ela mesma havia produzido e liberado por imprudência. Talvez.

Substância. Impossível deixar de examinar qual seria seu nome. Haveria de ser algo concreto o que agora transitava livremente por suas veias e adentrava seu sistema nervoso. E ela em sua inconsciência consentira que a dominasse por completo. Uma bile ou algo parecido. Quanto à inconsciência é impossível afirmar. Afinal, em estado germinal, não é incomum haver na alma fissípara somente uma impossibilidade frágil e frívola.

A verdade é que ele surgira à desavisada de maneira inadvertida e nada nunca pareceu tão certo. Assim como surgira, agora a deixava com algumas Pistas torturantes do sim e com a realidade infalível do não. Foi o suficiente para que elas, suas reais inimigas, a finalizassem. Se o fizeram sozinhas, não se sabe. Fora Esperança e seu irremissível descaso, talvez tenham contado com a ajuda da Realidade e das Pistas, também suas crias mantidas em algum porão nos recônditos de seu ser pouco desbravado.

Alessandra Barbierato

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suspension: walking the tightrope suspended by thoughts. acrylic on cardboard. 2015