Rios

Gostaria de chorar meu ser em vários rios
esvair-me por diferentes águas correntes
dissipar os ardis dessas dores frequentes

para longe arrastando os tormentos do ser
rios que tão caudalosos pudessem verter
por vários dias a fio sem parar de correr

que um escoasse pra fora os dias sem brio
um outro corresse embora os dias sem luz
e que a mente esvaísse do corpo já frio
do incessante sofrer pela carne e a cruz

Para Leonard,

AB

Vício

A cada dia recomeça a tentativa
de livrar-me desse vício martelo
a estacar-me de maneira aflitiva
encadeando-me a alma elo a elo
pedi ao tempo levasse para longe
a memória que recuso a revirar
mas retorna insistente no horizonte
e não deixa minha alma descansar
a memória movente se aquieta jamais
fecho fundos olhos breu luto pela paz
mas o pensamento já não se perfaz
sem ti que nele te moves e és a luz
como lente frente a tudo te prevejo
recorro ao que tenho e rendo ao ensejo
a memória contato que em tato dissolve
o meio-abraço quase apertado o beijo
suas mãos suave suporte que envolve
por dentro e por fora és tudo que vejo
se dentre o universo pudesse escolher
somente uma dádiva estaria em questão
tornaria concretas memória e imaginação.

AB

Dilema

Deuses e demônios cruzaram-me o horizonte
qual meditativa verdade então instaurada
dali me ficou proferida a função dessa fonte:
passar noite e dia na companhia da realidade
Tarefa mais árdua que essa não há, primeiro
por vezes tentei disfarçando, tais seres driblar
Depois em segredo comigo pensei infalível:
“não vejo, não falo ou escuto: não preciso lidar”
Acreditei ser possível tornar-me invisível
passando impassível por qualquer lugar
Quem me haverá de forçar ao intangível?
Por fim, disfarçado de tigre ardiloso e sagaz
veio a mim já exausto o engano me pondo a par
“Menina, fazer-te de sonsa é apenas fugaz
em solo arenoso quanto mais cresce a planta
mais árdua ainda é a tarefa de não afundar.”

AB

Moderação

Bem fez quem sondando comparou-o a distúrbio ou doença
Tal é a moléstia que pela fresta da alma incauta atravessa
Atentando aos sintomas se pode entender o estágio de evolução
A primeira medida é saber se a alma perdida vive de alucinação
Se a garganta ofegante e já seca não pensa nas coisas que diz
Se com a cabeça apertada arrebatada ao longe se crê mais feliz
Se indo de encontro ao agente apresenta estranha exaltação
E na confusão, somando um borrão ao andar parece voar pelo chão
Se com o pulso surdo e oscilante o ar é retido e o peito oprimido
Já demente a mente insistente provoca zunido no fundo do ouvido
Cautela pede a bizarra situação sem solução nem remédio eficaz
Antes que o coração solando compasso sinistro o passe pra trás
Se assim suceder, necessária será a extração da perigosa afecção
Segue-se então à incisão longo e penoso processo de cicatrização.

AB

DNA

Alastrado sob a pele como vida
Extirpá-lo tentei, inutilmente:
Raiz não concreta, da mais resistente
Matéria densa se mistura e se estranha
Mas essência ao misturar-se, se emaranha
Se nega ou afirma pouco se dá
Consigo presente sigo igualmente:
Corre-me no sangue alterado e pela veia
Onde me flui a vida e seu DNA passeia.
Sob o céu todos são afeiçoáveis
E num comum movimento inverso
Adentram-nos e se tornam confiáveis
Erigindo castelo de alicerce duvidoso
Onde almas se acorrentam incompatíveis
Ao invés de expandirem-se no venturoso:
Razão real do amor todo-poderoso.
Se nega ou afirma pouco se dá
Consigo corrente na veia igualmente:
Não mais embrionária, vegetativa ou dormente
Trago a alma de vida insuflada ainda que ausente.

AB