E naquele momento ela ficou paralisada. Algo lhe percorrera o corpo. Fosse veneno ou alguma toxina que lhe era própria, a verdade é que a deixou num estado tal que suas faculdades já não mais funcionavam. A sombra da então gigante Dúvida era incontestavelmente o que a obsidiava, no entanto, Ausência sorrateira aproveitava-se de seu estado debilitado para lhe desferir o golpe fatal: Não o ver novamente estava muito além do remanescente de suas forças já débeis.
Elas, a Dúvida e a Ausência, há muito haviam crescido e de amigas-irmãs se revelaram cruéis madrastas. De início, na medida do impossível, aprendera a conviver com elas. Logo que nasceram, colocou-as na edícula de sua alma, alimentando-as a cada dia. Acreditava que depois de ter permitido que elas nascessem, deveria deixá-las viver, coexistindo e cocriando no mesmo tempo-espaço de seu eu. Imprudência pura. Não atentara para o fato de que ambas foram geradas a partir de pedacinhos cissíparos de suas próprias entranhas, assim, o dia chegaria em que não mais se contentariam com tal subjugo.
Pedacinhos cissíparos… Sim, também nós nos reproduzimos de maneira assexuada. Tal cissiparidade, invisível, ocorre da seguinte maneira: começa no âmago onde a força vital impulsionada por sensações e pensamentos adversos se rompe, e aquilo que alguns gostam de chamar de alma, dilacerada, divide-se em idênticos pedacinhos de si. Daí, tal como funcionários públicos dum governo inadimplente, o coração consente e o cérebro reitera. Atente-se, pois, que o comum nesse caso é que o indivíduo original, a alma, talvez não volte a se regenerar por completo, como na maioria das espécies de platelmintos, cnidários, etc. O que se segue é a gestação intracerebral: a partir do pedacinho mais resistente, um pequeno balão-ovo vai se formando para que, uma vez quebrada a casca, o filhote-aflição seja liberado, verticalmente. Rumo aos céus deve seguir. Muitas vezes, no entanto, o pior acontece. Um mórbido orgulho parental ou até um equivocado senso de responsabilidade não permite que se vá. Logo, a edícula e a manutenção do rebento. Adverte-se também que tal cria dificilmente pode ser vista pelos olhos que a terra há de comer ou o fogo consumir. Entretanto, alguns sinais latentes podem ser observados, ainda que com dificuldade até mesmo para o próprio genitor.
E elas cresciam, a Dúvida e a Ausência. Matá-las seria abrir mão do que já não tinha. Deixá-las ir, simplesmente impossível, principalmente agora que crescidas estavam maiores que a alma mãe. Sempre pensava duas vezes e desistia. Mas ali, bem ali, elas se mostraram soberanas. Venceram-na. Deixaram somente o que dela era o mais denso. Oco. Verdade seja dita, ela já havia podido sentir que esse momento chegaria e já havia, em êxtase e à distância, quase tateado com as mãos firmes de seus pensamentos torpes a sensação que agora a impossibilitava até de respirar.
Na ocasião do vislumbre agarrara-se à sua dileta, também cria d’alma, Esperança. Acreditava que num momento como esse, tal ninfa piedosa, atiraria em seu oceano lamacento algum tipo de bote salva-almas: enganou-se. Via-se só. Provava agora a verdade do dito popular. Sim, a esperança seria a última a morrer. Não sabia por quanto tempo poderia aguentar a substância letal que lhe percorria as veias. Substância que ela mesma havia produzido e liberado por imprudência. Talvez.
Substância. Impossível deixar de examinar qual seria seu nome. Haveria de ser algo concreto o que agora transitava livremente por suas veias e adentrava seu sistema nervoso. E ela em sua inconsciência consentira que a dominasse por completo. Uma bile ou algo parecido. Quanto à inconsciência é impossível afirmar. Afinal, em estado germinal, não é incomum haver na alma fissípara somente uma impossibilidade frágil e frívola.
A verdade é que ele surgira à desavisada de maneira inadvertida e nada nunca pareceu tão certo. Assim como surgira, agora a deixava com algumas Pistas torturantes do sim e com a realidade infalível do não. Foi o suficiente para que elas, suas reais inimigas, a finalizassem. Se o fizeram sozinhas, não se sabe. Fora Esperança e seu irremissível descaso, talvez tenham contado com a ajuda da Realidade e das Pistas, também suas crias mantidas em algum porão nos recônditos de seu ser pouco desbravado.
Alessandra Barbierato
suspension: walking the tightrope suspended by thoughts. acrylic on cardboard. 2015
Ler esse texto foi como ler a página de um oráculo milenar, dentro de mim!
Leticia, seu comentário me deixa profundamente sensibilizada. Obrigada pela leitura!
Que isso! De qual Planeta você veio? Porque de Marte(eu) só vem pessoas com metade de um cérebro e ideais obsoletos. Plutão não tem vida, Júpiter está muito longe pra ser estudado.. na Terra tais filósofos já foram.
Eu deveria falar: “nossa.. está de parabéns..e blá blá blá” mas na verdade está ‘DO CARAAALHO!!(é um Parabéns a nível de Doutorado, acredite, é o maior das classes de elogio do UNIVERSO!).
Hehe.
Não lhe desejo sorte, porque isso é mito, só lhe desejo que continue tendo estas ótimas escolhas na vida, como este blog por exemplo.
Bob_lino, agora fiquei sem palavras: não saberia agradecer tamanho elogio. De qualquer forma, obrigada!
Este tipo de resposta que me agrada, mesmo porque assemelho imaginação com insônia. Afinal, já é quase meia noite de um SÁBADO(Qualquer) e estamos na frente de um computador.
rsrs
Apesar de meu raciocínio parecer ilógico na maioria das vezes, a ideia principal foi entendida.
Espero nunca vê-la ater suas ideias.
Sem palavras: texto, ideia, escolha de palavras. Não sei se já o fez, mas poderia considerar a ideia de escrever um livro. Uma surpresa feliz descobrir seu blog. 🙂
O livro deve surgir no futuro. Obrigada, Danilo, pelas palavras e pelo incentivo, sempre bem-vindo.
Meu nome é Ana, recentemente tive contato com seu blog porque, aparentemente, você teve com o meu; vamos conversar sobre literatura. Gostei da sua escrita; e no meu caso as coisas funcionam como dois mais dois são quatro: gostar ou não gostar. Eu não ando escrevendo nos últimos tempos, embora tenha contos guardados aqui; pediria-lhe que me escrevesse um email porque não sei outra forma de conversarmos; anaseffrin@gmail.com ; quero bater um papo sobre seus contos – contos ou confissões? – e você estuda letras, certo? Bueno, escreva-me um email para nos falarmos e conversarmos melhor, inclusive, por facebook. Um abraço.
Alessandra – gosto muito da forma como escreve. Parabéns! Augusto
Fico feliz, Augusto. Obrigada!
Lindíssimo texto. Pretendo ainda tirar um tempo para ler mais coisas do seu blog. Cheguei aqui porque, surpreendentemente, vi que alguém apareceu como “seguidor” do meu blog com título louco. Fiquei surpreso porque nunca o mostrei pra ninguém, na realidade.
Como disse, o texto está excelente; é complicado escrever textos que, por meio de um processo de “concretização”, falam sobre esses sentimentos e sensações tão abstratos do ser humano sem que torne tudo banal. Falo por experiência própria, porque minhas tentativas nesse sentido foram horripilantes. Mas o seu caso não deu brechas pra isso.
Abraço e até a proxima.
Olá Herick. Encontrei seu blog na busca por tópicos, o post com título em latim chamou atenção e fui ver. Gostei bastante, não pude não segui-lo 🙂 Obrigada pela leitura e comentário tão apurados. Abraço.
Seu texto supera meu ódio de ler texto branco em fundo preto. É um grande elogio vindo de mim com um tanto de invejinha.
Obrigada pelo comentário, Luiz!
Republicou isso em Alessandra Barbierato.
O Gênesis narrado pela criatura ou o Big Bang pela matéria. Ou, a consciência pela primeira palavra. Claro que estou só especulando…
Fantástico, amigo! Especulações a peso de ouro as suas. Obrigada!
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